A Cannabis sativa L. é uma das plantas medicinais mais estudadas do século XXI e com bons motivos. Com uma complexa composição fitoquímica, essa planta secular produz uma ampla gama de compostos bioativos com potencial terapêutico comprovado em diversas frentes da medicina integrativa. Mais de 120 fitocanabinoides já foram identificados, além de aproximadamente 190 outras moléculas de interesse farmacológico, como terpenos, flavonoides e compostos fenólicos.
Tradicionalmente associada ao uso recreativo e envolta em um histórico de proibição e estigma, a maconha está sendo revalorizada sob uma nova ótica: a quimiotaxonomia. Em vez de reduzir a planta ao seu potencial psicoativo, a ciência moderna classifica suas variedades com base em seus quimiotipos, ou seja, perfis químicos que determinam seu uso e aplicabilidade terapêutica.
Os cinco quimiotipos da Cannabis:
- Quimiotipo I – Elevado teor de Δ⁹-THC (efeito psicoativo predominante).
- Quimiotipo II – Proporções equilibradas de THC e CBD (uso medicinal).
- Quimiotipo III – Predominância de CBD, com traços mínimos de THC (cânhamo industrial).
- Quimiotipo IV – Rico em CBG (canabigerol).
- Quimiotipo V – Praticamente isento de canabinoides detectáveis.
Embora THC e CBD sejam os fitocanabinoides mais conhecidos, eles estão longe de serem os únicos com efeitos terapêuticos. Nos últimos anos, a atenção da comunidade científica tem se voltado para os chamados canabinoides menores — compostos produzidos em concentrações mais baixas na planta, mas com propriedades farmacológicas singulares e promissoras (Figura 1).
O que são canabinoides menores? E por que estão ganhando destaque?
CBG, THCV, CBDV, CBGA, CBDA, CBNA, CBN… a lista é longa e crescente. Esses canabinoides, apesar de menos abundantes, têm sido investigados por suas ações específicas no sistema endocanabinoide e em receptores não convencionais, como canais iônicos TRP e receptores órfãos como o GPR55.
Essas moléculas não atuam isoladamente: a eficácia terapêutica da cannabis está diretamente ligada ao chamado efeito comitiva (entourage effect) a sinergia entre fitocanabinoides, terpenos e flavonoides, que potencializa os efeitos de cada composto e amplia o espectro terapêutico da planta enquanto fitocomplexo.
Oxidação e transformação: CBN e Δ⁸-THC em destaque
A estabilidade química da cannabis é um fator crítico. O Δ⁹-THC, por exemplo, se oxida naturalmente ao longo do tempo, dando origem a outros compostos, como o CBN (canabinol) com efeito sedativo notável e o Δ⁸-THC, uma versão mais estável e de efeito psicoativo mais suave. Tais transformações reforçam a importância de armazenamento adequado e controle de qualidade farmacêutica nos derivados da cannabis (Figura 2).
Canabinoides ácidos: os precursores naturais da planta
No estado natural, os canabinoides predominam em suas formas ácidas: CBDA, THCA, CBGA. Eles contêm um grupo carboxílico (–COOH) e passam por descarboxilação quando expostos ao calor, processo que os converte em suas formas ativas: CBD, THC e CBG, respectivamente (Figura 3).
Mais do que simples precursores, esses ácidos canabinoides possuem propriedades farmacológicas próprias. Um exemplo marcante foi descrito por Richard et al. (2022), que demonstrou que CBDA e CBGA podem inibir a entrada do vírus SARS-CoV-2 em células humanas, bloqueando a ligação com a proteína Spike. O estudo sugeriu um potencial antiviral preventivo desses compostos, com aplicações possíveis em estratégias de contenção de infecções virais (Figura 4).
Canabinoides varínicos: estruturas pequenas, efeitos poderosos
Os canabinoides varínicos como, por exemplo o THCV, CBDV e CBCV possuem uma cauda molecular menor (C3H7, ao invés de C5H11), o que os diferencia dos seus análogos mais conhecidos. Essa sutil alteração estrutural muda completamente suas afinidades farmacológicas (Figura 1).
A CBDV (cannabidivarina), por exemplo, não é psicoativa, mas apresenta efeitos relevantes no sistema nervoso central. Atua sobre receptores TRP (TRPV1 a TRPV4, TRPA1, TRPM8) e receptores como GPR55 e GPR6, sendo investigada para:
- Epilepsia refratária
- Distúrbios do espectro autista (como a síndrome de Rett)
- Inflamações crônicas e doenças musculares, como a distrofia muscular de Duchenne
Embora os estudos clínicos ainda estejam em fases iniciais, os dados pré-clínicos são promissores.
Novos caminhos na farmacologia da cannabis
A era dos canabinoides menores nos convida a expandir o olhar sobre o potencial terapêutico da cannabis. Entender suas múltiplas rotas biossintéticas, transformações químicas e mecanismos de ação é essencial para prescrever com mais precisão, desenvolver novos fitofármacos e respeitar a individualização da dose de cada paciente.
Na Bcure, acreditamos que conhecimento científico acessível e ético é a base para uma medicina mais humana e eficaz. Estamos comprometidos em traduzir a ciência da cannabis em soluções reais para profissionais de saúde e pacientes que buscam alternativas integrativas, seguras e baseadas em evidências.
Referências:
- HURGOBIN, Bhavna; TAMIRU‐OLI, Muluneh; WELLING, Matthew T.; et al. Recent advances in Cannabis sativa genomics research. New Phytologist, v. 230, n. 1, p. 73–89, 2021.
- SALAMONE, Stefano; WALTL, Lorenz; POMPIGNAN, Anna; et al. Phytochemical Characterization of Cannabis sativa L. Chemotype V Reveals Three New Dihydrophenanthrenoids That Favorably Reprogram Lipid Mediator Biosynthesis in Macrophages. Plants, v. 11, n. 16, 2022.
- Degradants Formed During Phytocannabinoid Processing. Cayman. Disponível em: <https://www.caymanchem.com/news/degradants-formed-during-phytocannabinoid-processing>.
- VAN BREEMEN, Richard B.; MUCH