A busca por tratamentos inovadores e eficazes para doenças neurológicas raras da infância alavancou o uso de medicamentos à base de cannabis em crianças. Atualmente, a epilepsia refratária é a aplicação de cannabidiol (CBD) mais consolidada em estudos, com resultados transformadores.
A história da aplicação da cannabis na neurologia pediátrica tem uma história rica. No início da década de 1970, o pesquisador israelense Dr. Raphael Mechoulam, considerado o “pai da cannabis”, uniu forças ao cientista brasileiro Dr. Elisaldo Carlini e juntos, realizaram pesquisas pioneiras sobre as propriedades anti-convulsivas do CBD. Seus esforços colaborativos proporcionaram insights iniciais sobre o potencial do CBD como agente anticonvulsivante, preparando o terreno para investigações posteriores.
Um capítulo tocante nessa jornada é a história de Charlotte Figi, uma jovem que lutava contra a síndrome de Dravet – uma forma grave e rara de epilepsia pediátrica – que comoveu pessoas em diversos lugares do mundo. A notável resposta da pequena Charlotte ao tratamento com CBD (ela foi de centenas de convulsões semanais poucos episódios mensais) tornou-se um símbolo de esperança e um catalisador para pesquisas adicionais. Sua história serviu como um lembrete contundente da necessidade de investigação científica rigorosa sobre a eficácia e a segurança do CBD como possível tratamento para essas condições.
Em 2018, a FDA deu sinal verde ao Epidiolex, uma formulação farmacêutica de CBD, para o tratamento de convulsões em crianças com síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa. Os ensaios clínicos do Epidiolex demonstraram uma redução significativa na frequência mensal de convulsões em comparação com os grupos de placebo, com efeitos adversos mínimos relatados. Essa aprovação não apenas representou um avanço nos tratamentos baseados em CBD, mas também lançou as bases para investigações posteriores sobre o potencial da cannabis na neurologia.
As pesquisas continuaram a demonstrar a eficácia da cannabis para essas condições. Uma revisão sistemática e meta-análise de 2023 mostrou que o CBD é altamente eficaz tanto como terapia isolada quanto como terapia adjunta com clobazam no controle de convulsões em condições como a síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa, com poucos efeitos colaterais.
Os mecanismos subjacentes à redução da atividade convulsiva nesses síndromes neurológicas após o tratamento com CBD ainda não são completamente compreendidos, embora seja bastante provável que sejam multifatoriais. É amplamente aceito que o sistema endocanabinoide desempenha um papel vital no desenvolvimento e no bom funcionamento do sistema nervoso. Estudos têm mostrado que existem várias vias de sinalização que envolvem neurotransmissores e o sistema endocanabinoide, por meio das quais os canabinoides podem ter efeitos terapêuticos. Ainda necessitamos de investigações farmacodinâmicas adicionais das ações de medicamentos derivados do cannabis, avaliações de interações medicamentosas e diretrizes de manejo terapêutico, mas de modo geral se trata de uma abordagem bastante segura, especialmente quando comparada aos tratamentos convencionais.
Além do controle de convulsões, a pesquisa aponta para o amplo espectro de benefícios possíveis da cannabis para crianças.
Pesquisadores estão explorando vários alvos neurológicos em crianças que podem ser tratados com cannabis, com foco no CBD. Estudos sugerem que o CBD tem eficácia significativa como agente anti-inflamatório, antipsicótico, neuroprotetor, antidepressivo, analgésico e até antioxidante. A pesquisa atualmente indica várias possíveis formas de interação do CBD com o cérebro para promover mudanças terapêuticas. Vários ensaios clínicos e estudos pré-clínicos estão em andamento para fornecer mais respostas acerca do uso clínico adequado do CBD em pacientes infantis e jovens.
Um ensaio aberto sugeriu que o CBD pode ter efeitos benéficos adicionais na qualidade de vida dos pacientes, distintos de suas propriedades anti-convulsivas. Isso se alinha com um estudo de revisão sobre crianças com epilepsias graves tratadas com preparações artesanais de CBD, onde foi relatada melhora no humor, comportamento, linguagem, alerta e sono da maioria dos pacientes.
A Síndrome do Espectro Autista (TEA) representa um foco atual importante. O sistema endocanabinoide desempenha um papel fundamental no neurodesenvolvimento, bem como em respostas inflamatórias normais, e não surpreende que muitos estudos pré-clínicos e clínicos considerem as alterações na sinalização endocanabinoide no TEA. Pesquisas demonstraram que os fitocanabinoides podem ser eficazes na redução de alguns dos sintomas do TEA, como dificuldades na interação social e na comunicação, hiperatividade, ansiedade e distúrbios do sono. Alguns estudos têm demonstrado melhora significativa no comportamento e nos sintomas em pacientes que usam cannabis medicinal, com 61-93% dos participantes apresentando benefícios. Essas descobertas abrem novos caminhos para aprimorar a vida de crianças com TEA.
A cannabis demonstrou também promessa no tratamento de outras patologias em pacientes pediátricos, incluindo a síndrome do X frágil, a síndrome de Tourette, o Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal, Epidermólise Bolhosa e a ansiedade. Ensaios e investigações em andamento indicam o potencial multifacetado da cannabis no gerenciamento dessas condições. Por exemplo, o CBD pode ajudar a aliviar os sintomas de ansiedade em crianças, melhorando também sua função cognitiva e reduzindo os níveis de hiperatividade. Da mesma forma, pode reduzir de forma eficaz tiques e outros sintomas comportamentais associados à síndrome de Tourette. Além disso, o CBD mostrou potencial para melhorar as habilidades sociais e de comunicação de crianças com síndrome de X frágil. Essas descobertas sugerem que o CBD pode ser uma opção de tratamento valiosa para uma ampla gama de condições neurológicas pediátricas.
Conforme a jornada continua, a pesquisa com cannabis vai aumentando o leque de benefícios potenciais, mas também exige uma análise detalhada da segurança e do uso a longo prazo. Portanto, a pesquisa contínua é imperativa.
No mundo da neurologia pediátrica, a jornada histórica da cannabis é marcada pela colaboração, resiliência e esperança. Desde o trabalho pioneiro de Dr. Mechoulam e Dr. Carlini até a aprovação do Epidiolex e a expansão de horizontes no tratamento de várias condições, continuamos a evoluir, oferecendo um futuro mais promissor para crianças que enfrentam distúrbios raros e desafiadores.
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Escrito por: Leticia Dadalt, PhD: Bióloga, apaixonada pela ciência da vida, traz uma bagagem acadêmica robusta para a arena da educação canábica. Sua jornada é dedicada a compartilhar conhecimento, quebrar estigmas e abrir caminhos para que mais pessoas possam explorar os benefícios terapêuticos dessa planta incrível.