Cannabis na Dermatologia

Descubra a história milenar da cannabis medicinal e seus benefícios para fadiga, reumatismo, malária e doenças de pele. Conheça a importância da pele, nosso maior órgão, na proteção, comunicação e equilíbrio do corpo.

​​Os primeiros registros de uso medicinal da cannabis se encontram numa farmacopeia chinesa de Chen Nung, a cerca de 2700  aC, na qual a cannabis era recomendada para fadiga, reumatismo e malária. Além disso, suas sementes, ricas em ácido γ-linolênico, eram recomendadas para tratar eczema, psoríase e doenças inflamatórias.

A pele é o maior órgão do corpo humano e a primeira barreira entre o ambiente externo e o interior do corpo, protegendo-o contra patógenos e danos químicos, biológicos e/ou de radiação. Além de sua função protetora, a pele também desempenha um papel importante nas respostas imune, neurológica e endócrina, sendo composta por uma intrincada rede de comunicação multicelular, onde a pele e suas unidades pilossebáceas funcionam como órgãos neuroimunoendócrinos, respondendo a estímulos externos num processo complexo e delicado que é essencial para a manutenção da homeostase da pele.

O Sistema Endocanabinoide da Pele

Em 2009, um estudo com pesquisadores da Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra e Hungria identificou a presença de sítios CB1 e CB2 – receptores modulados pelo sistema endocanabinoide – na pele. O SEC epidérmico possivelmente medeia as ações dos endocanabinoides (anadamida e 2-AG)  na pele e, quando perturbado, pode causar distúrbios como dermatite, acne e prurido. Os receptores CB1 e CB2 foram encontrados em queratinócitos epidérmicos, melanócitos, células dérmicas, mastócitos, glândulas sudoríparas, folículos pilosos e fibras nervosas cutâneas. Outros receptores também foram identificados em várias células da pele. Além disso, as enzimas FAAH e MAGL foram identificadas em sebócitos, melanócitos, fibroblastos e imunócitos. 

Figura 1: A localização do sistema endocanabinoide na pele. A, folículo piloso; B, glândula sebácea; C, glândula sudorípara; D, nervo; E, vasos sanguíneos; F, queratinócitos; G, célula de Langerhans (imunócito); H, melanócitos. A figura mostra a localização dos dois principais endocanabinóides, 2-arachidoilglicerol (2-AG) e anandamida (AEA), e de vários receptores, incluindo os principais CB1 e CB2, TRPs e PPARs. Figura adaptada de Martins et. al 2022.

A partir disso, entende-se que a função do sistema endocanabinoide na pele é controlar e equilibrar o crescimento, diferenciação e sobrevivência das células, além de produzir respostas imunes adequadas. Assim, a manipulação específica do sistema endocanabinoide pode ser benéfica em uma variedade de doenças dermatológicas.

Estado da Ciência 

Condições estudadas

  • Acne
  • Sarcoma de Kaposi
  • Carcinoma Espinocelular de Cabeça e Pescoço
  • Melanoma
  • Câncer de Pele (Não Melanoma)
  • Sudorese Noturna e Transpiração Excessiva
  • Dermatite alérgica de contato
  • Eczema
  • Fungo nas unhas dos pés
  • Infeções fungais
  • Crescimento anormal do cabelo
  • Perda de cabelo
  • Herpes
  • Leishmaniose
  • Cicatrização de Feridas
  • Psoríase
  • Seborréia
  • Distúrbios da Pele e Tecido Subcutâneo
  • Esclerose Sistêmica/Esclerodermia
  • Prurido
  • Fibrose da pele e condições de cicatriz
  • Hidradenite supurativa/ Acne inversa
  • Pioderma Gangrenoso
  • Lesão por queimadura
  • Edema
  • Queimadura de sol
  • Epidermólise bolhosa
  • Zoster
  • Longevidade

Os produtos à base de canabinoides apresentam potencial de aplicações promissoras no cuidado da pele, tanto no tratamento tópico de doenças da pele quanto na indústria de cosméticos, agindo em condições como prurido, doenças inflamatórias e até mesmo cânceres de pele . Os estudos sugerem que os canabinoides e os moduladores dos receptores de canabinoides podem ter ação terapêutica em várias doenças inflamatórias da pele, devido às suas propriedades antiproliferativas, imunomoduladoras e anti-inflamatórias. Já existe um corpo significativo de estudos laboratoriais e modelos animais. Aumentar o volume de estudos clínicos rigorosos  nos permitirá aprofundar o conhecimento sobre o sistema canabinoide cutâneopara e explorar ainda mais essas possibilidades terapêuticas. De modo geral, o uso de produtos tópicos e orais a base de canabinoides (CBD, CBG, THC, por exemplo) se mostra bastante seguro. Em condições de difícil controle onde as abordagens mais convencionais muitas vezes falham, a cannabis entra como uma alternativa bastante atraente.
Abaixo revisamos brevemente  algumas condições que se encaixam nesse perfil.

Psoríase

Psoríase é uma condição crônica da pele caracterizada por inflamação e proliferação excessiva de queratinócitos. O sistema endocanabinoide presente na pele desempenha um papel crucial na manutenção da sua homeostase. A pele afetada pela psoríase contém menos sítios de receptores CB1 e CB2, indicando disfunção do SEC como um possível fator contribuinte. A ativação direcionada de sítios de receptores, como CB1, CB2, GPR55, PPAR-gama, por meio de fitocanabinoides como THC, CBN, CBD ou CBG , endocanabinoides, como a anandamida, bem como o direcionamento de suas enzimas de degradação, podem produzir efeitos terapêuticos que incluem ações anti-inflamatórias (por meio da redução de citocinas pró-inflamatórias), inibição da proliferação de queratinócitos ou regulação negativa da ativação de mastócitos (comum na psoríase), por exemplo. Além disso, os canabinoides parecem inibir o processamento de antígenos, a interação entre macrófagos e linfócitos T e a liberação de citocinas pró-inflamatórias, características da psoríase. A modulação do gene NRIP1 e o direcionamento da angiogênese são também mecanismos potenciais pelos quais os canabinoides podem exercer seus efeitos terapêuticos na psoríase.

Estudos clínicos têm demonstrado a eficácia de formulações tópicas contendo canabinoides, especialmente CBD e CBG, na melhoria dos sintomas. Esses efeitos se mostraram dose-dependentes, com reequilíbrio de linfócitos T e inibição direta da proliferação de queratinócitos. 

Existem vários estudos de caso relatando melhora rápida dos sintomas com manutenção eficaz com o uso de produtos contendo canabinoides.

Um estudo retrospectivo de 2019 na Itália, por exemplo, utilizou uma aplicação tópica de pomada enriquecida com CBD  duas vezes ao dia, com cinco pacientes com psoríase, relatou melhorias objetivas na hidratação, elasticidade e perda transcutânea de água, indicando um potencial terapêutico. 

Em geral, os canabinoides têm potencial como agentes terapêuticos para a psoríase devido às suas propriedades antiproliferativas, anti-inflamatórias e antiangiogênicas. Como os medicamentos antipsoriáticos atuais podem ter efeitos colaterais adversos, a busca por alternativas mais seguras ou tratamentos complementares é essencial. Adicionalmente, muitos  estudos  mostram que a cannabis produz efeitos terapêuticos capazes de mitigar comorbidades comuns da psoríase, como coceira, dor, ansiedade e depressão.

Acne

Alguns estudos iniciais indicam que o CBD pode ter efeitos anti-inflamatórios e redutores de oleosidade, podendo ser benéfico para tratar acne. Os canabinoides interagem com diversos sítios de receptores na pele humana e, portanto, podem apresentar múltiplos alvos novos e simultâneos para o tratamento da acne. Esses receptores celulares têm mostrado equilibrar o crescimento da pele, regular a produção de sebo e induzir efeitos anti-inflamatórios sistêmicos e localizados. 

Em termos da ação local, o CBD apresenta efeito combinado como sebostático, antibacteriano, antiproliferativo e anti-inflamatório. Em termos sistêmicos, o CBD tem potencial terapêutico conhecido na redução de certos transtornos de humor comumente associados à acne, como ansiedade ou depressão.

Prurido, ou coceira, é um sintoma comum em doenças inflamatórias da pele e pode prejudicar significativamente a qualidade de vida das pessoas afetadas. Os tratamentos antipruriginosos atuais frequentemente apresentam baixas taxas de eficácia, destacando a necessidade de novas opções terapêuticas.

O sistema endocanabinoide desempenha um papel crucial no processamento de manifestações sensoriais na pele, incluindo dor e prurido. Como os receptores de canabinoides são encontrados em terminações nervosas sensoriais e células inflamatórias, os agonistas de canabinoides e endocanabinoides se tornam opções de tratamento potenciais para o prurido, especialmente em pacientes que não responderam bem a outros tratamentos. A ativação de CB1 e/ou CB2, assim como outros receptores como o TRPV1, tem mostrado efeitos analgésicos e antipruriginosos poderosos em seres humanos e animais. Estudos clínicos têm demonstrado a redução do prurido em diversas doenças dermatológicas e sistêmicas, incluindo dermatite atópica, psoríase, prurido urêmico e prurido colestático. Formulações contendo canabinoides que estimulam CB2 ou aumentam a produção local de endocanabinoides têm sido sugeridas para aliviar a pele seca e o prurido. 

Epidermólise bolhosa

Embora a literatura científica atualmente disponível sobre o uso de terapêuticas à base de canabinoides no tratamento dos sinais e sintomas da epidermólise bolhosa seja limitada a revisões e metanálises de estudos de casos, todos os ensaios sugerem benefícios semelhantes, como redução da dor, da formação de bolhas, prurido, cicatrização de feridas e redução do uso de opioides e outros analgésicos. Numa condição de tão difícil manejo, a cannabis pode surgir como uma opção viável e com poucos ou nenhum efeito colateral.

Uma meta-análise publicada em 2021 avaliou 71 casos e encontrou  que o uso de terapêuticas à base de canabinoides melhorou os sintomas gerais da epidermólise bolhosa (95%), dor (94%), prurido (91%) e cicatrização de feridas (81%). A maioria dos participantes (79%) relatou diminuição no uso de outros analgésicos.   

Herpes

A exploração do envolvimento do sistema endocanabinoide (ECS) nas patologias de diversas infecções por herpes está em fase clínica. Ainda em 1980, pesquisadores descobriram que o THC era capaz de impedir a replicação do HIV 1 e 2 em placas de Petri. Um possível mecanismo para esses efeitos antivirais foi elucidado pelos resultados de um estudo posterior, que descobriu que os endocanabinoides anandamida e 2-AG estimulavam a liberação de efetores antimicrobianos por neutrófilos contra o HSV-1 (2013). No entanto, em seres humanos, o resultado ideal provavelmente será mais complexo. Vale destacar que terpenos comuns encontrados na cannabis também demonstraram efeitos antimicrobianos contra o vírus HSV-1, como eucaliptol, pineno, terpineol, ß-cariofileno e álcool perillyl (um precursor do limoneno).

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Em conclusão, os avanços na pesquisa sobre o uso da cannabis na dermatologia oferecem um horizonte promissor para o tratamento de diversas condições de pele. Com suas propriedades terapêuticas antiproliferativas, imunomoduladoras e anti-inflamatórias, a cannabis e os produtos à base de canabinoides têm o potencial de transformar a abordagem no cuidado da pele. À medida que nosso conhecimento sobre o sistema canabinoide cutâneo se expande, estamos cada vez mais próximos de desvendar os benefícios dessa planta incrível. Com mais pesquisas e descobertas, a cannabis tem o potencial de revolucionar a dermatologia, proporcionando tratamentos eficazes e melhorando a qualidade de vida dos pacientes.

Referências

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Escrito por: Leticia Dadalt, PhD: Bióloga, apaixonada pela ciência da vida, traz uma bagagem acadêmica robusta para a arena da educação canábica. Sua jornada é dedicada a compartilhar conhecimento, quebrar estigmas e abrir caminhos para que mais pessoas possam explorar os benefícios terapêuticos dessa planta incrível.

Com sede no Vale do Silício, somos líderes em biotecnologia para suplementação nutricional, com certificado de boas práticas em manipulação pela regulamentação dos Estados Unidos. 

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