A cannabis tem sido usada para fins medicinais há milhares de anos. Contudo, a proibição da cannabis em meados do século 20 interrompeu as pesquisas na área. Nos últimos anos, felizmente, o debate sobre o uso da cannabis para fins medicinais ganhou tração e a legalização em diversos países catapultou as pesquisas. O termo “cannabis medicinal” refere-se ao uso recomendado pelo médico da planta de Cannabis sativa e seus componentes, chamados canabinóides, para tratar doenças ou melhorar os sintomas, porém não existe distinção de espécies, trata-se sempre da mesma planta. A dor crônica é a razão mais comumente citada para o uso de cannabis.
Os fitocanabinóides, aqueles provenientes da planta, são capazes de mitigar vários tipos de dor em todas as suas complexidades de forma bastante única, uma vez que os receptores canabinóides estão amplamente espalhados pelas diversas vias moduladoras da dor no corpo humano. São elas os neurônios sensoriais centrais e periféricos, regiões cerebrais que modulam a discriminação sensorial, circuitos reguladores da dor no tronco cerebral e estados afetivos que regulam as respostas emocionais a estímulos nocivos. Por sua abrangência e ação complexas, a cannabis na sua forma completa (extratos full spectrum e produtos in natura) pode ser considerado uma polifarmácia pronta, nos oferecida gentilmente pela natureza através de milhares de anos de evolução.
Além disso, os endocanabinóides (aqueles produzidos por nosso prórpio corpo) podem responder à dor desbloqueando um ou mais dos primeiros caminhos terapeuticamente disponíveis para a obtenção dos efeitos analgésicos, com dados clínicos indicando eficácia analgésica em dores crônicas de várias etiologias.
Entendendo o Sistema Endocanabinóide (SEC)
Descrito no início dos anos 1990, o sistema endocanabinoide (SEC) é um sistema de sinalização celular composto por endocanabinoides, receptores canabinoides e enzimas responsáveis pela síntese e degradação dos endocanabinoides. Ele está presente em todo o sistema nervoso central dos vertebrados, incluindo o cérebro, e também no sistema nervoso periférico, incluindo órgãos, tecidos e células imunológicas.
Os endocanabinoides são compostos lipídicos produzidos pelo próprio corpo que se ligam aos receptores canabinoides presentes nas células. Os principais endocanabinoides são a N-araquidonoiletanolamina (AEA ou anandamida) e o 2-araquidonilglicerol (2-AG). Os dois principais receptores canabinoides, que são receptores acoplados à proteína G, são o CB1, encontrado principalmente no cérebro e no sistema nervoso central, e o CB2, encontrado principalmente em células do sistema imunológico e em tecidos periféricos. Além destes, outros receptores já descritos são GPR55, GPR18, GPR119 e TRPV1, TRPV2, FAAH, (fig X).
Os endocanabinóides são produzidos sob demanda e podem ser liberados imediatamente das células, podendo regular a transmissão sináptica excitatória e inibitória. No SNC, os endocanabinóides atuam como neurotransmissores, sendo liberados dos neurônios pós-sinápticos despolarizados e viajando para os terminais pré-sinápticos, onde ativam os receptores CB1 por meio de um mecanismo de sinalização retrógrada . O efeito geral é uma diminuição na liberação de neurotransmissores como GABA e glutamato. É precisamente este mecanismo que sugere o importante papel modulador dos endocanabinóides na manutenção da homeostase corporal.
Assim sendo, o SEC se torna fundamental na regulação de muitas funções fisiológicas. Através de estudos genéticos e farmacológicos, descobriu-se que os endocanabinóides agem como neuromoduladores para uma variedade de processos, incluindo a sensação de dor, o humor, o apetite, o sono, a memória, o controle motor, a reprodução, o sistema imunológico e a inflamação. Em outras palavras, os endocanabinoides e os receptores canabinoides interagem com sistemas de sinalização celular, como o sistema nervoso, o sistema imunológico e o sistema endócrino, modulando suas funções. Por esta razão, o SEC está envolvido em várias patologias, incluindo doenças neurodegenerativas, transtorno de ansiedade e depressão, transtornos alimentares, doenças inflamatórias e dor crônica.
Aplicações na Dor – o que dizem as pesquisas
Atualmente existem 227 estudos primários, examinando diretamente componentes do sistema endocanabinoide em relação à dor crônica, sendo 44 deles estudos clínicos e 139 estudos pré-clínicos, com 87% deles encontrando resultados no geral positivos (fonte: Plataforma Cannakeys). O European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA) já aponta a terapia canabinóide como tratamento para dor crônica. A plataforma UpToDate também já traz os fitocanabinóides comom opção terapêutica para tratar dor crônica.
Uma revisão sistemática e meta-análise publicada no JAMA em 2015 revelou que o uso de cannabis reduziu significativamente a dor crônica. Este abrangente estudo analisou 28 ensaios clínicos randomizados, envolvendo mais de 2.000 participantes, onde o uso de cannabis se deu em diferentes apresentações, incluindo produtos com CBD, THC e ambos. Algumas das condições avaliadas dentro da dor crônica foram: dor neuropática, fibromialgia, artrite reumatoide, dor músculo-esquelética, dor associada ao câncer e dor associada à esclerose múltipla. O estudo conclui que existe evidência de qualidade moderada para a indicação de cannabis para dor crônica e espasticidade, com a uma redução média da dor de 30% em relação ao placebo. Um ponto imporatnte a destacar é que os efeitos adversos observados no estudo são comumente associados ao uso de doses elevadas de THC e incomuns no uso de CBD.
A dor crônica é uma condição de difícil manejo, comumente levando ao desenvolvimento de outras patologias como ansiedade, depressão e insônia. Um estudo de coorte de 2023 avaliou a eficácia de cannabis em 1254 pacientes com dor crônica, com e sem ansiedade comórbida, encontrando melhora em todos os pacientes, mas com uma percepção de melhora na qualidade de vida ainda mais acentuada no grupo com ansiedade. Outros pontos muito interessantes observados neste estudo foram a diminição, em todos os grupos, do consumo de medicações opióides e um nível aceitável de efeitos adversos. Apesar das limitações inerentes a qualquer estudo observacional, estes resultados se somam a diversos outros, indicando um grande potencial no uso de cannabis no tratamento da dor crônica de diversas origens e também das condições associadas.
Uma outra revisão sistemática rigorosa publicada na Global Spine Journal em 2022 também encontrou resultados positivos ao avaliar as evidências e a eficácia do uso de cannabis no manejo de dor na coluna, cirúrgica e não-cirúrgica. Melhora também foi observada em outro estudo com pacientes sofrendo de lombalgia associada à hérnia de disco e estenose espinhal. Para concluir, um estudo fase II relatou melhora em pacientes com artrite da articulação basal do polegar após uso de CBD tópico.
A lista de evidências positivas do uso de diferentes produtos de cannabis para diversos tipos de dor é longa. E, apesar de ainda precisarmos de mais estudos rigorosos e de longa duração, fica claro o potencial desta terapêutica, seja como adjuvante ou principal, especialmente em casos refratários.
Mecanismo de ação
A distribuição dos receptores canabinoides no corpo humano fornece a base anatômica para entendermos os efeitos analgésicos dos canabinoides endógenos e exógenos. A ativação pré-sináptica dos receptores CB1 em diferentes regiões cerebrais ou nos aferentes primários inibe a liberação de neurotransmissores através da diminuição da condutividade de cálcio e do aumento da de potássio.
Os endocanabinóides, por sua vez, modulam a dor em condições fisiológicas. Assim, abordagens farmacológicas que aumentam os níveis de endocanabinóides inibindo as enzimas que controlam a desativação endocanabinóide ou bloqueando sua recaptação, exibem grande potencial terapêutico.
O THC é certamente o canabinoide mais estudado para dor, atuando mais diretamente nas rotas metabólicas e tendo sua ação testada e comprovada. O THC também é responsável pela maior parte dos afeitos adversos, indesejáveis em alguns casos, mas não em todos, e dos efeitos psicotróticos popularmente associados ao consumo recreativo de cannabis. Já o CBD possui vários mecanismos de ação no corpo humano que inclusive extrapolam os limites do sistema endocanabinóide. Suas ações antiinflamatória, analgésica e ansiolítica são amplamente reportadas na literatura. Além disso, o CBD possui um perfil muito seguro, apresentando efeitos adversos raros, leves e na maioria das vezes, transitórios, mesmo em doses mais elevadas. Além desses dois principais compostos, outros canabinoides naturais como o CBG e o CBN também apresentam promissores efeitos sobre a dor e vêm recebendo atenção dos pesquisadores.
Canabinóides e opióides
Somente em 2019, 70 mil pessoas morreram de overdose nos EUA, a maioria delas por opióides. Um estudo publicado no JAMA em 2014 aponta que 60% das mortes por opióides acontecem com pessoas sem perfil de abuso, ou seja, são mortes acidentais de pessoas buscando alívio para a dor. A questão dos opioides é grave e urgente. Os primeiros resultados de pesquisas indicam uma possível sinergia entre o CBD, o THC e os opioides, permitindo potencialmente efeitos analgésicos combinados, reduzindo as dosagens de opioides e os riscos de efeitos adversos. Um estudo prospectivo estadunidense de 2022 acompanhou 115 pacientes por seis meses em terapia concomitante e mostrou uma redução média de cerca de 70% na quantidade diária de morfina utilizada. Um outro estudo de 2022, uma meta-análise com pacientes de lombalgia crônica, indicou diminuição nao uso de opióides, além de melhora nos escores de dor e desabilidade com o uso de teraoia canabinoide. Ainda, um estudo alemão acompanhou pacientes idosos de uma clínica da dor por três anos, encontrando também redução no uso de opióides e boa tolerância de produtos de cannabis por parte dos pacientes.
Em estados americanos onde o uso de cannabis é regulamentado, se observou uma diminuição de 25% nas mortes decorrentes de overdose por opioides. Movidos por esta e outras estatísticas, uma equipe multidisciplinar dos EUA e Canadá elaborou em 2021 a primeira orientação clínica com etapas práticas para introduzir terapêutica à base de canabinóides durante a manipulação de opióides na dor crônica.
As abordagens adjuvantes com utilização de fitocanabinoides mostram uma forte promessa para melhorar a eficácia das farmacoterapias existentes para a dor e limitar os perfis de efeitos colaterais indesejados. O entendimento do nosso sitema endocanibinoide abre muitas novas possibilidades terapêuticas e a cannabis tem se mostrado cada vez mais como uma alternativa eficaz e segura para o manejo da dor crônica.
Referências
- Bachhuber, M. A. et al. (2014) ‘Medical cannabis laws and opioid analgesic overdose mortality in the United States, 1999-2010’, JAMA Internal Medicine, 174(10), pp. 1668–1673. doi: 10.1001/jamainternmed.2014.4005.
- Bapir, L. et al. (2023) ‘Comparing the effects of medical cannabis for chronic pain patients with and without co-morbid anxiety: A cohort study’, Expert Review of Neurotherapeutics. Taylor and Francis Ltd. doi: 10.1080/14737175.2023.2181696/SUPPL_FILE/IERN_A_2181696_SM8963.DOCX.
- Benedict, G., Sabbagh, A. and Conermann, T. (2022) ‘Medical Cannabis Used as an Alternative Treatment for Chronic Pain Demonstrates Reduction in Chronic Opioid Use – A Prospective Study’, Pain Physician, 25(1), pp. E113–E119.
- Finn, D. P. et al. (2021) ‘Cannabinoids, the endocannabinoid system, and pain: a review of preclinical studies’, Pain, 162(7), pp. S5–S25. doi: 10.1097/j.pain.0000000000002268.
- Heineman, J. T. et al. (2022) ‘A Randomized Controlled Trial of Topical Cannabidiol for the Treatment of Thumb Basal Joint Arthritis’, Journal of Hand Surgery. W.B. Saunders, 47(7), pp. 611–620. doi: 10.1016/j.jhsa.2022.03.002.
- Kogan, N. M. et al. (2021) ‘Novel cbg derivatives can reduce inflammation, pain and obesity’, Molecules. MDPI, 26(18). doi: 10.3390/MOLECULES26185601.
- Mackie, K. (2008) ‘Signaling via CNS cannabinoid receptors’, Molecular and Cellular Endocrinology, 286(1, Supplement 1), pp. S60–S65. doi: https://doi.org/10.1016/j.mce.2008.01.022.
- Malvestio, R. B. et al. (2021) ‘Cannabidiol in the prelimbic cortex modulates the comorbid condition between the chronic neuropathic pain and depression-like behaviour in rats: The role of medial prefrontal cortex 5-HT1A and CB1 receptors’, Brain Research Bulletin. Elsevier Inc., 174, pp. 323–338. doi: 10.1016/j.brainresbull.2021.06.017.
- Di Marzo, V., Bifulco, M. and De Petrocellis, L. (2004) ‘The endocannabinoid system and its therapeutic exploitation’, Nature Reviews Drug Discovery, 3(9), pp. 771–784. doi: 10.1038/nrd1495.
- Mlost, J., Bryk, M. and Starowicz, K. (2020) ‘Cannabidiol for pain treatment: Focus on pharmacology and mechanism of action’, International Journal of Molecular Sciences, 21(22), pp. 1–22. doi: 10.3390/ijms21228870.
- Pertwee, R. G. (2006) ‘The pharmacology of cannabinoid receptors and their ligands : an overview’, pp. 13–18. doi: 10.1038/sj.ijo.0803272.
- Philpott, H. T., O’Brien, M. and McDougall, J. J. (2017) ‘Attenuation of early phase inflammation by cannabidiol prevents pain and nerve damage in rat osteoarthritis’, Pain. Wolters Kluwer Health, 158(12), p. 2442. doi: 10.1097/J.PAIN.0000000000001052.
- Price, R. L. et al. (2022) ‘The Efficacy of Cannabis in Reducing Back Pain: A SystematicReview’, Global Spine Journal. SAGE Publications, 12(2), p. 343. doi: 10.1177/21925682211065411.
- Russo, E. B. (2007) ‘History of Cannabis and Its Preparations in Saga, Science, and Sobriquet’, Chemistry & Biodiversity. John Wiley & Sons, Ltd, 4(8), pp. 1614–1648. doi: 10.1002/CBDV.200790144.
- Sihota, A. et al. (2021) ‘Consensus-based recommendations for titrating cannabinoids and tapering opioids for chronic pain control’, (May 2020), pp. 1–10. doi: 10.1111/ijcp.13871.
- Vučkovic, S. et al. (2018) ‘Cannabinoids and pain: New insights from old molecules’, Frontiers in Pharmacology, 9(NOV), pp. 1–19. doi: 10.3389/fphar.2018.01259.
- Whiting, P. F. et al. (2015) ‘Cannabinoids for medical use: A systematic review and meta-analysis’, JAMA – Journal of the American Medical Association, 313(24), pp. 2456–2473. doi: 10.1001/jama.2015.6358.
Escrito por: Leticia Dadalt, PhD: Bióloga, apaixonada pela ciência da vida, traz uma bagagem acadêmica robusta para a arena da educação canábica. Sua jornada é dedicada a compartilhar conhecimento, quebrar estigmas e abrir caminhos para que mais pessoas possam explorar os benefícios terapêuticos dessa planta incrível.